Íntegra da decisão judicial sobre o retorno das aulas presenciais para os alunos da Rede Pública
CLASSE JUDICIAL: AÇÃO CIVIL PÚBLICA INFÂNCIA E JUVENTUDE (1690)
NÚMERO DO PROCESSO:0705543-34.2020.8.07.0013
AUTOR: M. P. D. D. F. E. D. T.
REU: D. F.
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL propôs AÇÃO CIVIL PÚBLICA em desfavor do
DISTRITO FEDERAL.
O autor aduziu, em síntese, que desde março de 2020, com a eclosão da pandemia de Covid-19 no
território nacional, diversas posturas foram adotadas pelos governantes a fim de conter a disseminação do
vírus causador da doença. Assinalou que o principal objetivo daquele momento era o de se evitar o
colapso do sistema de saúde diante da possibilidade de uma intensa quantidade de casos simultâneos.
Nesse quadro, apontou que o Distrito Federal foi a primeira unidade da federação a determinar a
suspensão das aulas na rede pública e privada de ensino, por meio da edição do Decreto nº 40.509/2020,
de 11 de março de 2020, o que foi se estendendo com uma sequencia de atos normativos. Pontuou que
mais recentemente, a partir de julho/2020 as medidas de restrição anteriormente impostas vieram
experimentando arrefecimento e flexibilização. Aduziu, em comparativo, que muito embora tenha havido
a reabertura de diversos setores da economia local, tais como estabelecimentos comerciais, bares,
restaurantes, comércios, shoppings centers e até mesmo de brinquedotecas, o governo recuou quanto à
retomada das aulas presenciais nas escolas públicas do Distrito Federal, postergando-a para 2021.
Mencionou que tal postura se afigura ilegal e viola frontalmente o princípio da proteção integral da
criança e do adolescente, com repercussão negativa que vai além da educação, ecoando também na saúde
– física e mental, ao lazer, à dignidade, à cultura e ao bem-estar.
Requereu, a título de tutela provisória de urgência, seja determinado e autorizado o imediato retorno das
aulas presenciais nas creches e escolas da rede pública no ensino infantil do Distrito Federal, bem como
seja determinada e autorizada a retomada das aulas presenciais nas escolas do ensino fundamental e
médio da rede pública de Ensino do Distrito Federal, tudo em caráter facultativo e sem prejuízo da
atenção devida aos protocolos sanitários aplicáveis.
A título tutela de mérito, requereu a confirmação da procedência dos pedidos liminares.
Os artigos 208 e 227, da Constituição Federal, determinam que é dever do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito fundamental de acesso à educação.
Sob este enfoque, o direito vindicado nos autos desta ação civil pública, ajuizada perante esta Justiça
especializada, visa uma prestação de fazer do Estado para que seja garantida a retomada das aulas
presenciais para TODAS as crianças e adolescentes da rede pública de ensino do Distrito Federal,
assegurando-lhes o direito precípuo de Educação.
Trata-se de Direito Difuso, que tem por característica a satisfação do direito de um grupo de pessoas
indeterminado e indivisível, que apenas se encontra unido em razão de uma situação de fato, qual seja a
garantia de acesso à educação infantil.
Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), no artigo 208 e seus incisos,
estabelece que se regem, pelas disposições daquela Lei, as ações de responsabilidade por ofensa aos
direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular de
atendimento em ensino.
Especificamente com relação à competência, assim dispõe o inc. IV do art. 148 da Lei 8.069/90:
Art.148.
A Justiça da Infância e Juventude é competente para: [...]IV - conhecer de ações
civis fundadas em interesses
individuais, individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o
disposto no art. 209;
Verifica-se, portanto, a competência absoluta desta Justiça Especializada, uma vez que o Estatuto da
Criança e do Adolescente é lei especial e prevalece sobre a regra geral de competência das Varas da
Fazenda Pública do DF, quando se tratar de Ação Civil Pública, em que se busca assegurar direitos
individuais, difusos e coletivos de crianças e adolescentes.
Dessa forma, tendo em vista que a presente demanda tem por causa de pedir GARANTIR o acesso de
crianças e adolescentes ao ensino presencial ofertado pelas escolas da rede pública do Distrito Federal, é
inquestionável a competência absoluta desta Vara da Infância e da Juventude na presente demanda.
Noutro giro, a concessão de tutela provisória de urgência requer a verificação dos requisitos que lhe são
inerentes, em conformidade com o art. 300, caput, do Código de Processo Civil, o qual segue adiante transcrito:
Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade
do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
Nesse sentido, colhe-se do ordenamento jurídico, desde a Constituição da República Federativa do Brasil,
forte atenção direcionada ao direito à educação, direito social mais bem trabalhado a partir do artigo 205
da Constituição Federal, que assim dispõe:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Nessas diretrizes normativas soma-se o que estabelece ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual
que deixa consignado em seu quarto artigo:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com
absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber
proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou
de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d)
destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude.
Deve ser notado, dentro desse conjunto de abordagem, que o direito vindicado pela parte autora não só é
provável, como verificável de modo claro.
A tutela aos direitos da criança e do adolescente, independentemente de classe social, há de ser prioritária
quando relacionada com qualquer outro direito ou interesse, tudo em razão da vulnerabilidade deles e a
especial condição de pessoas em desenvolvimento, a fim de garantir sua defesa e efetividade.
Dessa forma, os direitos da infância não podem ser tangenciados de forma alternativa, tampouco serem
negligenciados pelo Estado.
Em síntese, contra um direito fundamental da criança e do adolescente o
Estado não pode opor restrições indevidas. Deve, pois, cumpri-lo em razão da prioridade absoluta.
Traduz-se evidente, nada obstante, que a adoção de medidas restritivas teve de ser implantada em razão
da emergência de saúde pública reconhecida a partir da Lei Federal nº. 13.979/2020 que, em seu artigo 3º
autorizou a utilização de isolamento, quarentena, uso obrigatória de máscaras etc.
Da mesma maneira, não
se pode olvidar que o Supremo Tribunal Federal, em decisão tomada na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº. 672, assegurou aos governos estaduais, distrital e municipal, a competência para
adoção e manutenção de medidas restritivas durante a pandemia de Covid-19.
Nessa quadra, diversos foram os decretos editados pelo Governador do Distrito Federal que vieram a
fazer frente ao enfrentamento da atual crise de saúde pública, pautados em estudos orientados pela
denominada sala de situação, cujos dados são acessíveis a partir do sítio eletrônico
http://info.saude.df.gov.br/.
A par disso, não se pode olvidar que o Estado já caminha para a normalização das atividades, sejam elas
essenciais ou não, o que se verifica a partir da abertura dos diversos setores da sociedade, observável, com
maior incidência a partir do Decreto 40.939/2020, tal como mencionado pela parte autora.
Atenção, pois,
deve ser dada à retomada das atividades escolares em sua completude.
Antes de concluir, afigura-se público e notório que as escolas particulares já foram reabertas e retornaram
às suas atividades bem como o comércio, os locais de cultos religiosos e há autorização para a realização
de espetáculos públicos, não sendo justo e nem tampouco lícito que, num país carente de educação, as
crianças e adolescentes que utilizam o sistema público de ensino sejam tolhidos nos seu direito precípuo
de educação.
Por fim, os órgãos de saúde do Estado já lançaram as recomendações necessárias para o funcionando das
atividades escolares em meio ao quadro já instalado de superação da pandemia, de modo que as relações
de trabalho já estão normalizadas. Há de se prosseguir, portanto, na retomada da plenitude da educação e
cidadania.
Feitas essas considerações, existe, portanto, a probabilidade do direito.
Por outro lado, no que se refere ao risco ao resultado útil do processo, este também se faz presente, pois,
com a indefinida suspensão das aulas presenciais, os alunos que utilizam a escola pública serão violados
frontalmente em seus direitos, propiciando a ocorrência de eventos danosos, tais como evasão escolar,
aumento da violência intrafamiliar, trabalho infantil, ansiedade e até mesmo desnutrição e fome;
Justamente numa categoria de pessoas que se encontram em peculiar condição de desenvolvimento.
Acrescente-se ainda que, num país de enormes diferenças sociais, onde o fosso que separa as classes
privilegiadas das classes menos favorecidas é enorme e intransponível, maior se torna o dever do Estado
de garantir a prioridade na preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e com
destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude ( artigo 4°, § único, letras “c” e “d” do ECA).
Cumpre ainda destacar que não é tarefa do Poder Judiciário, no cumprimento de seu dever constitucional,
substituir as funções do Administrador Público de implementação e execução das políticas públicas.
Assim sendo, DEFIRO em parte o pedido de tutela de urgência, para determinar ao Governo do Federal, que apresente, no prazo de 5 (cinco) dias, plano de retorno às aulas presenciais nas creches e
escolas da rede pública do ensino infantil, e das aulas presenciais nas escolas do ensino fundamental
e médio da rede pública de ensino, de forma escalonada, devendo estar completamente concluído o
processo de retorno, no prazo máximo de 20 (vinte) dias.
Em caso de descumprimento, fixo a multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), limitado a R$
300.000,00 (trezentos mil reais), a ser recolhido para o Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente
do Distrito Federal.
Cite-se e intime-se o Distrito Federal para apresentação de defesa, no prazo de 15 dias, e para que
apresente as informações determinadas acima, no prazo de 05 dias.
Notifiquem-se os Secretários de Estado de Educação e de Saúde do Distrito Federal para ciência e
cumprimento da presente decisão. Instrua-se com cópia dos autos.
Fica, desde já, autorizado o cumprimento das diligências em horário especial e o uso de reforço policial,
caso necessário.
Dê-se ciência ao Ministério Público.
BRASÍLIA, DF, 23 de outubro de 2020
15:24:18.
RENATO RODOVALHO SCUSSEL
Juiz de Direito